segunda-feira, 21 de junho de 2010

Dois giros, um só.

Da série de contos "Diários em terceira pessoa"
Uma tentativa de literatura. Por que nenhum deles é real. Nenhum deles é fictício.


Chave - Murilo Araújo

“Quando me chamou, eu vim...
Quando dei por mim, tava aqui...”

- Indo para lá?
- Sim, você também?
- Sim. Posso lhe fazer companhia? É perigoso andar sozinho na rua a essa hora.
- Contanto que a sua companhia não seja perigosa a essa hora, por mim, tudo bem...
Teve um riso leve em resposta: instigante, curioso, provocador e oportuno.




- Fazendo o quê na rua a essa hora? – ele perguntou.
- Se isso for uma insinuação, vou responder que você é tão passível de acusações quanto eu.
- Ah, é? – ele riu. Pois eu estou apenas voltando para casa depois de um dia cansativo e cheio de trabalho.
- Como posso acreditar em você?
- Quem disse que pode?
- Eu não disse que posso.
- Eu posso acreditar em você?
- Pela insinuação que fez, acho que você tem essa resposta.
- Não foi uma insinuação.
- Soou como uma.
- Está pondo palavras na minha boca?
- Adoro essa pergunta – respondeu, rindo.
- Por quê?
- Porque posso responder que há coisas mais interessantes a se fazer com a boca de uma pessoa. Mas esqueça. Apenas estou entendendo as coisas como quero entender.
- Como assim?
- O que você disse me soou como uma insinuação. E se eu achei que era isso, era isso. Ponto.
Ele riu.
- Você parece uma pessoa determinada.
- Então eu sou uma pessoa determinada. É o que você acha que sou, mesmo que não seja. É a sua verdade. Ponto.
Ele riu outra vez. Não reagia. Achava intrigante, enquanto sua companhia desconhecida apenas falava sem lhe dirigir olhar... Chegou perto de casa, e quase se lamentando, mudou de assunto para se despedir.
- Eu viro nesta esquina.
- Ótimo. Eu também.
- Mora por aqui?
- Não.
- E para onde está indo?
- Para onde você está indo?
- Para aquele prédio... mas você não me respondeu.
- Eu sei que não.
- Eu sei que você sabe. Quero saber por quê. Quero saber pra onde vai. Não existem as tais verdades, neste caso?
Sua companhia parou nesta hora, e nesta hora olhou para ele. Avançou sobre ele, pondo-o na parede, leve, sutil, mas com toda certeza que fosse possível.
- As tais verdades existem sempre... relativas, mas existem sempre. Talvez não exista um lugar para onde eu vá de verdade. Mas neste caso, então, a verdade é que não interessa o lugar para onde eu vou. Até porque eu já sei que você vai para aquele prédio.

***

Passos a frente, ele pôs a chave na porta de seu apartamento e entrou. Parou um segundo, deu passagem a outra pessoa – não estava sozinho. Trancou a porta, como de costume. Girou a chave apenas uma vez e parou. Observou sua última atitude e riu. Riu das suas inseguranças costumeiras, que agora lhe pareciam uma grande bobagem.

Ele, que sempre girava a chave duas vezes, agora não se preocupava. Ele, que andava sempre na rua olhando desconfiado por todos os lados, apenas ria de si mesmo. Ele agora já não achava má ideia o fato de não haver câmeras no prédio.

De fato, não havia.
Nem no elevador, nem nos corredores.

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