quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

os rascunhos e as besteiras

Da série de contos Diários em terceira pessoa.
Uma tentativa de literatura. Por que nenhum deles é real. E nenhum deles é fictício.


Para ouvir enquanto lê: A desenhista (Ana Larousse)

Chegava outra vez a uma daquelas fases da vida em que não conseguia não ficar pensando em tudo. Não que ele já não se cansasse de pensar o tempo inteiro... mas é que, naquelas fases, a coisa aumentava o ritmo, fervendo na cabeça, sacudindo no peito, tudo misturado.

Estava ali de novo: numa daquelas fases, aquele tempo sempre esquisito em que não conseguia não ficar pensando em tudo. Pelo menos dessa vez tentava ter a garantia de que não estava recitando novamente um soneto camoniano cheio de contradições; de que não estava outra vez exagerando no perfume de propósito; de que não estava num daqueles períodos de amor exigente... tentando ter a garantia de que não estava repetindo os tropeços, de que tinha processado atentamente os aprendizados de antes, pra que a vida não sentisse a necessidade de repetir uma lição dolorosa.

Lembrou-se de um telefonema:

– Queria te pedir, por favor: rasga aquele desenho que eu te dei? Desculpa, pode parecer ridículo, medíocre, mas eu já estou consumido demais por tudo que aconteceu. Quero apagar, mentir pra mim fingindo que não sofri, não consigo lidar com a ideia de que você ainda tenha aquele desenho. É uma evidência da minha fraqueza nas tuas mãos. Uma evidência muito concreta da intensidade com que eu te amei, o que me faz pensar que você ainda vai ter a minha fraqueza nas tuas mãos pra sempre... Não deu certo o amor desenhado que você pediu e eu quis te dar... então, por favor... rasga.

Lembrança doída em forma de bonecos de palitinho: eram dois, frente a frente, franja em um, cachinhos no outro, e as mãozinhas redondas, entrelaçadas. Lembrança doída em forma de barrinha de chocolate, aquele sinal de leveza, partilhado no meio da clandestinidade de uma rua escura. Lembrança doída de um toque que não houve, de um pedido não feito, de um amor que se quis grande sem notar a falta do espaço para crescer. Lembrança doída que, felizmente, já não doía mais – e a evidência parecia ser o riso desconcertado que debochava da própria capacidade de ser piegas...

Foram muitos os sentimentos conturbados. Estava sendo, mais uma vez. E ao lembrar aquele caso em especial, aquele amor desenhado e tão borrado, aos poucos se dava conta do quanto sempre fora obcecado por esses caminhos errados em que o amor se planeja. De um modo ou outro, desenhara sempre: às vezes algo mais nítido, delineado cuidadosamente segundo os princípios estéticos do romantismo mais clássico; às vezes traços mais malfeitos e confusos; às vezes abstrações que talvez só fizessem sentido no coração dele...

Estava sempre a desenhar os amores como ele queria que fossem.

Às vezes era a lápis mesmo. Mas era quase sempre no papel invisível das expectativas, que já não era tão fácil de rasgar e jogar fora como o daquele telefonema de tanto tempo antes. De todo modo, estava tudo sempre pronto para ser manchado com as lágrimas que as frustrações costumavam trazer, às vezes num sofrimento que vinha por antecipação.

Metáforas, metáforas...
Ele deu outro riso desconcertado com o próprio momento de epifania.
Sentiu-se um pouco ridículo. Mas nada que não lhe parecesse normal.

Respirou fundo, ainda tentando entender, e decidiu tomar como medida não mais desenhar. Que continuasse deixando o próprio cheiro na roupa emprestada, que continuasse escrevendo haicais, que seguisse comprando paçocas sentimentais, barrinhas de chocolate ou CDs daquela banda que contasse histórias que ninguém mais entenderia... Mas desenhar, que evitasse. Sem grandes resoluções que não sejam resolvidas a dois. Sem expectativas que não sejam as que os abraços e sussurros revelarem. Um passo de cada vez – o clichê difícil de executar. E se houver desenho, que seja o que as pegadas deixarem, num emaranhado final que sirva de memória.

Conseguiria? Não dava pra prever... Mas se desse tudo errado no final, ele ao menos sabia que poderia, algum dia, voltar a rabiscar os seus afetos desenhados e arriscados de sempre. No fundo, não era completamente sem sentido: aquela constante possibilidade de frustrar-se ainda lhe parecia melhor do que a ideia de perder a esperança no amor.

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