segunda-feira, 1 de outubro de 2012

voa, meu passarinho...


— Eu queria saber uma coisa muito importante. O senhor é capaz de cantar sem estar cantando?
— Não estou entendendo bem.
— Assim — e cantei uma estrofe da Casinha Pequenina.
— Mas você está cantando, não está?
— Pois aí é que está. Eu posso fazer tudo isso por dentro sem cantar por fora.

Ele riu da singeleza mas não sabia aonde eu queria chegar.


— Olhe, Titio, quando eu era pequenininho eu achava que tinha um passarinho aqui dentro e que cantava. Era ele que cantava.
— Pois então. É uma maravilha que você tenha um passarinho assim.
— O senhor não entendeu. É que agora eu ando meio desconfiado com o passarinho. E quando eu falo e vejo por dentro?

Ele entendeu e riu da minha confusão.

— Vou explicar para você, Zezé. Sabe o que é isso? Isso significa que você está crescendo. E crescendo, essa coisa que você diz que fala e vê, chama-se o pensamento. O pensamento é que faz aquilo que uma vez eu disse que você teria logo...
— A idade da razão?
— Bom que você se lembre. Então acontece uma maravilha. O pensamento cresce, cresce e toma conta de toda a nossa cabeça e nosso coração. Vive em nossos olhos e em tudo que é pedaço da vida da gente.
— Sei. E o passarinho?
— O passarinho foi feito por Deus para ajudar as criancinhas a descobrirem as coisas. Depois então quando o menino não precisa mais, ele devolve o passarinho a Deus. E Deus coloca ele em outro menininho inteligente como você. Não é bonito?


Eu ri, feliz, porque estava tendo um “pensamento”.

— É. Agora vou embora.
— E o tostãozinho?
— Hoje não. Vou ficar muito ocupado.

Saí pela rua pensando em tudo. Mas eu estava lembrando uma coisa que me deixava muito triste. Totóca tinha um coleirinha muito lindo. Mansinho que subia no dedo dele quando mudava o alpiste. Podia até deixar a porta aberta que ele não fugia. Um dia Totóca esqueceu ele de fora no sol. E o sol quente matou ele. Me lembrava de Totóca com ele na mão, chorando, chorando e encostando o passarinho morto no rosto. Aí ele dizia:

— Nunca mais, nunca mais eu prendo um passarinho.
 Eu estava junto e disse:
— Totóca, eu também nunca vou prender.

Cheguei em casa e fui direito a Minguinho.

— Xururuca, vim fazer uma coisa.
— O que é?
— Vamos esperar um pouco?
— Vamos.
Sentei e encostei minha cabeça no seu tronquinho.
— Que é que nós vamos esperar, Zezé?
— Que passe uma nuvem bem bonita no céu.
— Pra quê?
— Vou soltar o meu passarinho. Vou, sim. Não preciso mais dele...

Ficamos olhando o céu.
— É aquela, Minguinho?
A nuvem vinha andando devagar, bem grande, como se fosse uma folha branca toda recortada.
— É aquela, Minguinho.

Levantei emocionado e abri a camisa.
Senti que ele ia saindo do meu peito magro.

— Voa, meu passarinho. Bem alto. Vá subindo e pouse no dedo de Deus. Deus vai levar você para outro menininho e você vai cantar bonito como sempre cantou para mim. Adeus, meu passarinho lindo!

Senti um vazio por dentro que não acabava mais.
— Olhe, Zezé. Ele pousou no dedo da nuvem.
— Eu vi.

Encostei minha cabeça no coração de Minguinho e fiquei olhando a nuvem ir-se embora.

— Eu nunca fui malvado com ele...

Aí virei o meu rosto contra o seu galho.

— Xururuca.
— Que foi?
— Fica feio se eu chorar?
— Nunca é feio chorar, bobo. Por quê?
— Não sei, ainda não me acostumei. Parece que aqui dentro a minha gaiola ficou vazia demais...


Trecho do livro "Meu pé de laranja lima", de José Mauro de Vasconcellos.
Trechinho bonito que sempre (sempre) me deixa chorando por horas...
E que faz muito (muito) sentido agora.

Voa, meu passarinho. Vá subindo e pouse no dedo de Deus...

Nenhum comentário:

Postar um comentário