Ele ia passeando tranquilamente olhando espantado o movimento sempre desordenado da Avenida Paulista. Jesus meio que gostava de passear por ali, de vez em quando. Não era bem o seu lugar, Ele sabia. Era todo um movimento alucinado de gente que passava a toda hora sem sequer se olhar. Ele gostava mais de dar uma volta na favela, principalmente porque a vendedora de cocada da esquina (uma senhora negra, gordinha e de sorriso alegre) lhe lembrava muito a sua mãe... e sempre o cumprimentava: "Quer cocada, Senhor?". Ele comia, de vez em quando. Não sempre, que côco lhe fazia pigarrear, coçando a garganta. Mas a alegria da mulher, e o gosto de amor na cocada eram tão fortes, lembravam tanto a humildade da pacata Jerusalém em que Ele crescera, que Ele comia, de vez em quando. E se sentia feliz.
Mas naquele dia Ele tinha ido passear na Paulista...
Centro financeiro da nação, a coisa mais megalomaníaca que Ele já conhecera, que agradava apenas por lhe fazer renovar a vontade de entender o diferente... Ele que achava aquilo tudo tão estranho, tão obsessivo, tão absurdo... Gostava de passear por ali, de calça jeans e sandália, se esforçando para olhar a cada um e perceber os seus sentimentos, as dores, as angústias, os sonhos escondidos e até mesmo oprimidos por aquela velocidade toda desesperada... E naquele dia, em que ele tinha resolvido passear na Paulista, assustou-se de repente com alguém ali que lhe percebera.
- Jesus?
Era uma garota jovem, que parecia ter uns 17 para 18 anos. E os olhos dela ficaram felizes ao perceber que era Ele mesmo quem havia encontrado.
- Jesus, que bom te ver! Quero falar contigo faz tempo! Por que nunca mais foi lá na comunidade, Senhor?
- Estou lá todo dia... às vezes silencioso, meio sem ninguém me ver, mas tô sempre por lá - respondeu, com um sorriso.
- Ih, Senhor, então sou eu quem estou vacilando, sem te perceber. Mas que bom que encontrei você por aqui. Tem um tempinho pra trocar uma ideia comigo?
- Claro, claro! Mas tô cheio de fome. Topa uma lanchonete, coisa assim?
- Tem um McDonalds logo ali na frente.
- Ih, muito capitalista. Prefiro o cafezinho do boteco que tem na rua ali de trás. Topa?
- Senhor, você é o cara.
- O cara é o seu Zé, lá do boteco. Ninguém faz café melhor que ele!
E caminharam... café comprado, mais um pão com manteiga para abastecer o estômago, e começaram a prosa.
- Então, mocinha, me conte: o que lhe aflige?
- Então, Jesus... tô angustiada. O mundo tá cercando a gente de tanta informação, que eu não sei mais o que faço para seguir um caminho bom, um caminho de fé.
- Calma, calma. Reflita com calma. Se você quis vir falar comigo, é porque lembra de alguma coisa do que eu disse, e deve se importar com isso, não é?
- Sim, com certeza!
- Então... lembra primeiro do mandamento que eu dei...
- Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a mim mesma.
- Isso. Tá aí, ó... eu acho que você tem a resposta! Pelo menos foi sempre esse o conselho que eu tive pra oferecer!
- Eu sei, Senhor! Mas é disso mesmo que eu estou falando! Tem tanta gente tentando me dar tanta referência ao mesmo tempo! Não sei mais quem é o meu próximo! Como faz, Jesus? Tô angustiada!
Jesus riu um riso doce, de nostalgia. Lembrou-se de algo semelhante que lhe havia acontecido bastante tempo antes daquela tardinha.
- Vamos ver se eu te ajudo. Pensa comigo: sabe aquele pessoal lá da comunidade, que tá envolvido com o tráfico de drogas?
- Sim. É uma realidade muito triste, não é?
- Sim, muito triste... meu sofrimento aumenta todos os dias, quando vejo que isso se espalha. Mas vamos continuar o raciocínio. Digamos que, numa destas brigas de gangue, um traficante foi baleado, ficando muito ferido, jogado na rua quase morrendo. Passou então um padre da comunidade, e viu tudo acontecendo, mas não ajudou o rapaz.
- Pior que eu acreditaria nisso. Eu sei que tem muita gente boa na igreja que defende a vida desse pessoal, e luta por eles... mas ainda é tão forte a filosofia de que "bandido bom é bandido morto"!
- Pois é...
- Mas siga a história, Senhor.
- Vamos lá... pouco tempo depois, passou uma daquelas senhoras evangélicas da rua que fazem aquele trabalho de evangelização, sabe?
- Sei. Ela ajudou o rapaz?
- Pior é que não. Mesmo com os ferimentos ali aparecendo, ela achou que ele podia estar fingindo alguma coisa para lhe roubar, olhou para ele como um pecador.
- Gente, que absurdo! O moço merece alguma ajuda! Não importa o que ele faz!
- Pois é a aí que a história melhora... mal a senhora acabou de passar, veio um moço que era... deixe-me ver...
E Jesus fez uma pausa concentrada, tentando achar o que melhor lhe serviria para terminar a história.
- Um homossexual.
- Nossa...
- Assusta um pouco, não é?
- É... a gente até diz que respeita, mas na verdade ainda não consegue lidar bem com a diferença. Mas enfim, ele ajudou o rapaz?
- Sim, ajudou. Tentou levá-lo para um hospital, mas ele tinha medo de ser preso, e o moço acabou levando o garoto ferido para a própria casa, abrigando e cuidando dele até que melhorasse.
- Tudo isso assim, de graça?
- Sim, claro! Por que a pergunta?
- Me desculpe pelo comentário, Senhor, mas será que o moço gay não ficou interessado no bandido?
- Talvez até tenha, mas não ajudou só por isso. Ajudou por sentir compaixão. Homossexuais têm todos os sentimentos que as outras pessoas têm, não é? Pelo menos eu acho...
- Verdade... E o bandido? Não tentou assaltar a casa, nem nada?
- Nada. Ficou apenas agradecido, e quando melhorou, foi embora.
- Bonita história, Senhor. É uma metáfora, não é?
Jesus riu.
- No meu tempo, chamavam isso de parábola... Mas o nome não interessa tanto. Vamos ver é se consigo fazer você entender porque te contei tudo isso: na sua opinião, entre o padre, a senhora e o homossexual, qual foi o próximo do rapaz ferido?
- Foi o gay, Senhor. Foi quem teve compaixão, carinho, cuidado...
- Pois então vá, e faça o mesmo.
Os olhos da garota brilharam por ter encontrado algo tão bonito, que lhe soava como resposta. Abriu um sorriso tímido, de quem começava a compreender, e agradeceu a Jesus.
- Por nada, querida. Venha conversar quando quiser. Agora preciso ir. Queria voltar lá na comunidade ainda hoje. Estou com vontade de comer cocada.
- A da moça da esquina? Costuma me dar pigarro.
- Em mim também - e riu. Mas ainda assim, nada me convence de que existe outra cocada boa como aquela no mundo. Vai amor na receita.
- Verdade, Senhor. Então até mais. Obrigado, de novo!
- Por nada, de novo!
Jesus levantou-se para ir embora, e enquanto pegava as moedinhas no bolso da calça, a fim de pagar o café e o pão, ouviu a moça lhe chamar de novo:
- Senhor!
- Diga!
- Parando pra pensar, o Senhor me contou a parábola do samaritano!
Rindo novamente, Jesus respondeu:
- Pensei que você nunca fosse reparar nas semelhanças entre as histórias...
- Estou processando as informações ainda... devo estar meio lenta. Mas me diga, Jesus: por que o Senhor não me mandou simplesmente lembrar da parábola, ou ler ela na Bíblia, para entender o que o Senhor queria?
- Porque talvez ela não fosse fazer tanto sentido para você. Se eu falasse novamente do sacerdote e do levita, em vez do padre e da evangélica missionária, talvez você não fosse entender que eu estava falando de gente que domina algum poder, que costuma dizer que segue a Bíblia, e que talvez tenha deixado de ajudar o rapaz machucado exatamente achando que estava agradando a Deus, por não se misturar com o pecado. Se eu falasse num samaritano, em vez de falar num homossexual, talvez você não entendesse que eu estava falando de gente que costuma ser odiada, malvista, desprezada e excluída, como os samaritanos eram no meu tempo, e como os homossexuais são hoje. Se eu não tivesse falando de gente do seu tempo, da sua realidade, talvez você não entendesse que eu estava querendo dizer que vai para o céu quem pratica o exercício do amor, quem pratica a liberdade. E nem sempre estas pessoas são aquelas que se dizem religiosas, porque por vezes elas usam a Palavra do meu Pai para oprimir.
- Isso é muito forte, Jesus.
- Sim, eu sei... A história do samaritano foi uma das mais subversivas que contei em meu tempo. E acho que falar de homossexuais hoje é uma atualização interessante, subversiva também. Muita gente talvez nem acreditaria em mim falando estas coisas hoje, não é?
- Só gente que ainda não sabe o quanto o Senhor é bacana, Jesus... só gente que não sabe o quanto você briga pra que a gente se transforme, e transforme o mundo.
- Brigo sim. Na paz, mas brigo mesmo.
Deu mais um sorriso, e virou-se para pagar o lanche. Seu Zé reconheceu o velho freguês de sempre, e disse, no meio de uma gargalhada:
- Olha, seu Jesus, o pão eu vou cobrar porque a gente aqui precisa, né? Mas o café é de graça!
- Seu Zé, o senhor é o cara, seu Zé! - Jesus respondeu, feliz.
Deixou as moedinhas no balcão, e foi-se embora, arrastando o chinelo pelo chão da rua.
No meio do caminho para a favela, já se perguntava sobre qual sabor de cocada iria querer aquele dia.
...
Querido, que graça de texto! Podemos reproduzir no nosso blog?
ResponderExcluirBjs!
E eu que já estava pensando em fazer contato com vocês para disponibilizar o texto...
ResponderExcluirFiquem muito à vontade!
Ficarei feliz!
Lindo texto... Soa profético para mim... Parabéns!
ResponderExcluirQue Belo texto!!Enquanto terminava de ler... um longo arrepio percorreu todo o meu corpo e permaneceu por vários minutos.
ResponderExcluirMuita Luz pra vc sempre, e, tomara que continue escrevendo e compartilhando coisas tão bacanas assim!!
Posso compartilhar com amigos na Net?!
Denise
Gente, brigadão pelos comentários! Aqui, no twitter, por e-mail, a galera tem dado um retorno lindo e cheio de esperança depois que escrevi.
ResponderExcluirGilberto: acho que esse sabor de profecia é forte pra todos nós. E que ela se cumpra! Com a beleza dos sonhos e a força do amor, que ela se cumpra, num mundo mais justo e mais cheio de direitos!
Denise: Muita luz para todos nós. Obrigado pela visita, pelo comentário, e volte sempre que puder! Sinta-se à vontade para divulgar... ficarei feliz!
Aos outros leitores que têm passado por aqui, sem comentar, também, obrigado!
Beijão, galera!
Paz e bem, sempre!
Lindo.
ResponderExcluirvoce tem um jeito muito legal de escrever. Não consegui parar de ler...
Como eu nao tinha reparado nisso antes?! hehe
Continue assim, nao pare! Seus textos sempre me dizem algo bom!
- Isso é muito forte, Jesus.
Abraçooo