terça-feira, 17 de agosto de 2010

Antropocêntrico

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Da série de contos "Diários em terceira pessoa"
Uma tentativa de literatura. Por que nenhum deles é real. Nenhum deles é fictício.

Homem Vitruviano - Leonardo Da Vinci (Reprodução)

- Posso te ver?

Ele parecia carinhoso ao telefone, mas do outro lado da linha, Tiago duvidava se deveria dar crédito àquele telefonema, àquele terceiro contato.

Se conheceram numa boate.
Se beijaram sem saber nomes. E pelo ritmo do beijo, não teriam se incomodado com isso por algum tempo – como não se incomodaram, de fato.



Já haviam se cruzado antes, em algum lugar. Talvez ali mesmo, na boate. Tiago nunca havia notado a presença do garoto com algum interesse. De alguma forma, lhe passara despercebido, mesmo que fosse notavelmente atraente. Só nessa hora se dava conta, mas também não interessava. A música dançante da boate guiava o tom, e um mecanismo instintivo de atrações operava entre piscadelas e danças à parede, lançadas de um lado ao outro da pista: justo lá, onde estava Tiago, tomando alguma coisa com vodka, e bebendo da incredulidade de que beijaria mais aquele rapaz – os outros daquela noite, até então, haviam sido apenas os outros daquela noite. Aquele parecia mais. Pelo menos uma massagem a mais no seu ego. E aconteceu.

Encontraram-se casualmente no meio da rua, tempos depois. Na ocasião, o garoto pediu a Tiago o número de telefone. Não passou o seu, não foi uma troca (por que destacar isso?), e agora ele ligava com um carinhoso “posso te ver?”. Tiago duvidava se deveria dar crédito àquela primeira manifestação de interesse. Se perguntava: a que ponto ele mesmo estaria interessado no interesse da voz carinhosa do outro lado da linha?

De alguma forma, parecia tudo muito engraçado. Surreal, até. O garoto da boate tinha magnetismos. Olhos grandes, perfuradores, uma beleza nítida, corpo forte, meio imponente – se lançava sobre o mundo de olhares que nunca o ignorava, enquanto passava (sempre desacompanhado). E o que talvez fosse improvável tornava-se hipótese aos ouvidos de Tiago, por intermédio de um celular: por acaso, o homem todo-poder se submetia aos seus tortos encantos? Logo os de um reles mortal, cafajeste sentimental? Tiago não sabia como reagir à ligação. Como de costume, lhe veio a ideia de que, provavelmente, não havia nada a perder. Talvez, a paciência. Mas isso, relevaria. Que fosse.

Encontraram-se na casa do garoto.
Durante todo o tempo, Tiago se perguntava se alguém, algum dia, já teria lhe dado prazeres maiores que aqueles...

Tinha gosto, sabor... gosto de gente, de carne, de profano, de nada que remetesse a quaisquer futilidades sentimentais. Apenas uma pegação desordenada, uma marcação coreográfica de movimentos bruscos, fortes, tudo cada vez mais sem calcular, sem pensar, sem ritmo, corpo a corpo, violento, com vontade, com vontades... uma dança musicada por respirações, rangeres, palavrões, gemidos, altos, sem pudores, apenas pulsando, pulsando, pulsando forte, cada vez mais forte, mais... e mais...

Um grito. Dois, num só. Sensação incontida de prazer. E dois corpos envolvidos em suor e suspirares numa cama de casal.

Conversaram por algum tempo uma coisa e outra, nada muito coordenado. E era apenas curioso notar que o garoto começava de novo a manifestar as marcas de carinho que tivera ao telefone. Tiago procurava entender (ele sempre procurava): loucura e leveza seriam uma dicotomia dos relacionamentos?

- Foi bom você ter vindo aqui. Não suma. Te ligo, qualquer hora...
- Ok... vou esperar...

Tiago foi embora, olhando para o garoto ainda à porta, ele que tinha vindo se despedir vestindo apenas uma excitante boxer branca. Na própria cabeça, apenas não gostava das dúvidas com que aos poucos se deparava. Não sabia o que entendia dos sinais do rapaz, não sabia o que entender, e não queria estar pensando demais nas coisas – isso não costumava ser bom sinal.

Restava esperar a tal ligação, ou dar um sinal, ou deixar que as coisas acontecessem e fossem boas como tivessem que ser. Se fossem boas como a energia quente que ele ainda exalava por uma avenida vazia, já seria, no mínimo, interessante.

***

Em casa, e já de volta à cama, Augusto ainda tentava recuperar um pouco do fôlego. A transa havia sido boa.

O que mais lhe dava prazer, por vezes, era mesmo aquela sensação de provocar o prazer alheio. Não por altruísmo, mas por algum egocentrismo às avessas, que o movia a pensar no mágico do que exercia, a despertar nos outros o mais íntimo de suas loucuras, os gritos mais alucinados, as contorções mais arrepiadas, as indecências excitantes que só se fazem a dois. Não lhe interessavam necessariamente as pessoas, mas aquilo que elas lhe proporcionavam: aquilo que faziam só para ele, só diante dele, reagindo única e exclusivamente à presença dele. Encantava vê-las enlouquecer naquilo tudo que não teriam com mais ninguém.

Encantava vê-las sob a sua espécie de domínio, porque ele não se submetia. E era bom estar assim, sempre só.

Vestia uma boxer branca, única peça que pôs no corpo para se despedir da sua companhia. Enquanto pensava todas estas coisas, com a mão por dentro da cueca provocante, Augusto acariciava o seu instrumento de poder.

Brincava com o centro do universo.
...

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